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domingo, 31 de maio de 2009

Angra, Holy Land e o folk-progressive-metal

A música amazonense de Nilson Chaves. O metal progressivo característico da banda. Uma pitada da música clássica de Bach. Esses eram os ingredientes para se fazer um álbum perfeito. Mas André Matos acidentalmente acrescentou um elemento extra na mistura: a vocalização do J-Rock. E assim nasceu Holy Land, segundo álbum da banda brasileira Angra, lançado em 1996 na Alemanha.


Capa frontal do CD, que ao abrir-se revela um mapa do século XVI

A banda, que só canta em inglês, foi formada em 1991 em São Paulo, e segue a linha do metal progressivo, um estilo menos pesado de metal, que combina toda aquela parafernália do rock (guitarra, baixo, bateria) com instrumento mais suaves, pendentes para o clássico, como os de sopro. Holy Land é um álbum conceitual que conta a história do Brasil desde o seu descobrimento, descrevendo por entre suas canções, ora agitadas, ora calmas, a vida no país naqueles séculos. Todas são tão incrivelmente fantásticas que é impossível definir a melhor, e me senti na obrigação de analisá-las uma por uma.

1 - Crossing
Essa na verdade é uma missa de Giovanni Pierluigi da Palestrina, um importante compositor italiano da época da renascença, e representa a 1ª missa realizada em solo brasileiro.

2 - Nothing to Say
Continuação direta da 1ª faixa, nesta música já se percebe a influência de música clássica da banda, com a presença de violinos, além das guitarradas geniais de Rafael Bittencourt. O metal progressivo é marcado pelo ritmo, ditado pelo combo guitarra + baixo + bateria, que ora cresce e ora diminui.

3- Silence and Distance
Com uma suave introdução de piano e flauta que subitamente muda para guitarra e bateria, esta música conta com a vocalização bem característica do metal - aquela que deixa o cantor implorando por um expectorante. Novamente Rafael Bittencourt deixa sua marca, brindando-nos com sua guitarra. Após isso tudo, a música volta novamente para o piano, encerrando-se num tom melancólico.

4 - Carolina IV
Sem dúvida uma das melhores faixas do disco, Carolina IV combina tudo o que a banda misturou pra fazer esse álbum maravilhoso: guitarra, baixo, bateria, flauta e vocalizações auxiliares (em português!). Com grande influência de música brasileira, a música conta inclusive com um trecho puro de música amazonense, acompanhada por um tímido metal, que sabe que não pode competir, mas que logo depois entra em sua melhor forma, incluindo até mesmo piano em sua composição. Nota também para o trabalho do baixista, (músico mais injustiçado de uma banda, por estar sempre no fundo da guitarra e não ser percebido) Luís Mariutti.

5 - Holy Land
A música homônima do álbum é sem dúvida uma obra-prima de André Matos, seu compositor. Combinando piano, guitarra e baixo a flauta, chocalhos e tudo a que os músicos descendentes de índios têm direito, Holy Land nos embala num divertido ritmo folclórico, para então nos jogar nos braços de Bittencourt, de volta à pacata Amazônia, Bittencourt novamente e Amazônia + Bittencourt! Não é maconha, mas é uma viagem.

6 - The Shaman
Com a aura mais negativa do disco, essa música é linda em sua composição maléfica e progressiva, e abre espaço até mesmo para o depoimento de um pajé, falando, como o título sugere, dos rituais "xamânicos" (o termo correto seria "pajelança") praticados por índios brasileiros antes da chegada dos portugueses. Sinistramente linda. Ou lindamente sinistra.

7 - Make Believe
Indiscutivelmente digna de destaque, Make Believe tem a introdução mais linda e envolvente do disco. Com influências da MPB (marcadas pelo uso de outro instrumento de corda que não a guitarra e o baixo), André Matos fez um ótimo trabalho como vocalista aqui. Bittencourt, sem comentários.

8 - Z.I.T.O
Introdução com tambores inusitada; nosso mestre Rafael faz incrível aparição aqui também. A letra, que fala da vida humana in natura ("Mother nature brings to me, in fantastic purity, everything I need"), somada à melodia animada até nos faz perdoar a errata de pronúncia de Matos logo no início da música ("there's something shing back", ao invés de shing back). Pequena referência ao primeiro álbum da banda, Angel's Cry (sobre a qual meu próximo post será), pode ser ouvida aqui. A propósito, guitarradas de Bittencourt >>>² Chimbinha. Mas isso você já sabia.

9 - Deep Blue
A música que dá nome ao blog é a mais marcada pelo classicismo do disco. Órgão e corais de igreja podem ser ouvidos aqui. A própria letra da música (clique aqui) já fala dessa ligação da banda com a renascença europeia. Linda de verdade. Rafael faz uma pequena porém belíssima ponta aqui, para sumir de vez na 10ª (e última) faixa.

10 - Lullaby for Lucifer
Aqueles menos afeiçoados do metal devem ter lido esse título e pensado: "Puta merda, lá vem barulheira". Mas não. Apesar do nome, Lullaby for Lucifer é a música mais serena do disco. Só a título de encerramento mesmo, feita com violão, sons de ambiente e aura melancólica. Uma curiosidade é a pronúncia da palavra "apples" (épples ao invés de êipples), feita por André Matos, que denota seu aprendizado britânico, e não estadounidense, da língua.


Banda de metal, cabelo comprido não podia ser deixado de lado, né, gente?

A conclusão é: o álbum é simplesmente lindo. Vale a pena ser ouvido na íntegra!

Link para download:
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Até a próxima com Angel's Cry!

sexta-feira, 29 de maio de 2009

D-Cup e os piores títulos da história

D-Cup é o nome deste conto a seguir, que escrevi em uma tarde qualquer após inspirar-me sutilmente por algumas histórias de Holmes. Como sempre, minha falta de criatividade para títulos levou-me a esse, meio estranho, mas que tem a ver com a história. Para que possam entendê-la melhor, adicionei algumas notas de rodapé em lugares específicos do texto. Elas se encontram no fim, graças à formatação do blog. Não deixem de lê-las!


D-Cup


"- Era uma garota jovem, alegre, sociável e de um círculo de amizades invejável. Loira, magra, estatura mediana. Linda, linda. Não namorava, mas tinha em vista um rapaz do qual muito falava, que estuda em sua classe. Moramos aqui não faz um ano, e ela não costuma sair de casa sozinha. Vai à escola e volta; vez em quando sai com as amigas e nada mais. Temo que tenha se perdido, ou pior... - o homem perdeu o controle e pôs-se a chorar.
- Acalme-se, Sr. Hiedler. Tenho certeza de que encontraremos sua filha, mais cedo ou mais tarde. Mas para isso preciso que me explane os momentos anteriores ao seu sumiço."

Meu nome é Alfred Polanski. Moro em um pequeno apartamento da rua Mable, em Berlim. Durante muito tempo servi à OSS (hoje CIA), como membro da Divisão de Espionagem Internacional. Para alguns é difícil entender como um jovem de 19 anos conseguiu entrar em uma agência tão importante, mas depois de minha breve explicação, tudo se torna mais claro: fui um dos mentores da equipe que previu o ataque a Pearl Harbor, no Hawaii, em 7 de dezembro de 1941[1]. Meu chefe de seção aceitou-me porque julgava ter eu um incrível senso de percepção e análise – que se provou mais tarde verdadeiro.
Hoje estou aposentado, mas a imagem que construí durante a 2ª G.M. me faz ter que lidar com alguns casos de pessoas em desespero, como o do senhor que atendo agora. É no mínimo irônico que eu, tendo trabalhado contra mentes tão maléficas e ardilosas como as de Hitler, Goebbels[2] e Himmler[3] tenha vindo morar justamente na cidade que era seu covil. Mas não posso evitar. Ela me atrai inconscientemente, me fascina pela riqueza histórica que oculta e pela cultura do inconformismo criada entre seus habitantes. Mas mais irônico ainda é o fato do sobrenome deste senhor que aqui se encontra ser o mesmo da família do ditador nazista, e que só não passou ao seu pai por um descuido do escrivão que o registrou.

- Certo, Sr. Polanski, contar-lhe-ei tudo tal qual o sei. Espero que me perdoe, pois não sou muito detalhista e temo não poder responder-lhe tudo o que me perguntar.

- Não faz mal. Conte-me o que sabe.

- Bem, minha filha Anne desapareceu há cerca de seis dias atrás, na quarta-feira. Nesse dia ela foi à escola normalmente. Não tomou café, pois acordou tarde. Pegou suas coisas, beijou Klara e eu e saiu.

- Ah, sua esposa chama-se Klara? - interrompi eu.

- Sim, chama-se sim. Por quê?

- Nada, nada – respondi eu, pensando na incrível capacidade irônica do destino[4] – Prossiga com a narrativa, por favor.

- Bem, às 13:00 minha esposa e eu começamos a ficar preocupados, pois ela deveria estar em casa há uma hora atrás, e ela não era de se atrasar para o almoço. Saí à sua procura, e na escola me informaram que ela havia saído no horário normal, às 11:30. Passei em frente a uma lanchonete, onde julguei que ela pudesse ter parado em virtude da fome que possuía, mas nada encontrei. Foi então que, ao resolver voltar para casa e chamar a polícia, encontrei jogado na calçada um bloquinho de anotações que pertence a Anne. Foi tudo o que consegui entregar às autoridades como prova, e tudo o que lhe trago agora para que possa tentar deduzir algo sobre esse caso.

- Então a polícia devolveu o bloquinho?

- Sim, veja o Sr. Eles estão tão convencidos de que ela foi raptada e depois assassinada pelo jovem Hain que lhe prenderam e deram o caso como resolvido. O julgamento dele é na próxima sexta.

- E esse quem é? E como os inspetores chegaram a essa conclusão?
- Lembra-se de que falei do rapaz que minha filha gosta? Pois bem; há em sua sala outro rapaz, este Hain, que segundo os depoimentos de algumas amigas de minha filha há muito é apaixonado por ela. É muito inteligente, recatado, mas muito fechado, de modo que poucos o conhecem bem. No bloco que encontrei havia desenhos do garoto por quem ela se enamora, e no canto da última folha havia uma pequena declaração e uma premeditação de tragédia (que poderia muito bem ser um suicídio, mas que os inspetores interpretaram como assassinato), que os peritos comprovaram como sendo de Hain. Prenderam-lhe imediatamente, como já lhe contei, de modo que ele agora espera julgamento.

- Posso ver o caderno que encontrou?

- Sim, aqui está - respondeu ele, entregando-me.

Passei a analisá-lo. Era um bloco de anotações comum, desses que se compra em qualquer papelaria, mas muito bem cuidado – tirando as páginas sujas de terra por causa da queda ao chão. Era cheio de desenhos, conversas entre amigas e pequenos adesivos. Após uma breve inspeção, devolvi-o ao Sr. Hiedler.
- Bem, Sr. Hiedler, vejo que sua filha é uma exímia desenhista. Não suporta álgebra, é perfeccionista e tem amigas que adoram sair à noite.
Ele me olhou espantado, balbuciando palavras como “de”, “que”, “modo” e “senhor”. Sorri.

- Veja bem, senhor, não é difícil reconhecer alguém que não gosta de matemática, ainda mais com tantas equações e fórmulas erradas em seu caderno. No entanto, o modo como as organiza, como escreve e como conserva o caderno denota seu perfeccionismo. Quanto às amigas, nada de extraordinário; nas páginas em que há diálogos entre elas e sua filha percebi um cheiro quase esgotado pelo tempo em que ficou sem uso. Um cheiro de perfume muito forte, que só poderia ser usado à noite, e que mesmo após o banho da manhã ainda impregna o corpo. E como presumo que o senhor e sua esposa não a deixam sair à noite, concluo que ele pertence a uma de suas amigas. Não que isso seja relevante às investigações. - brinquei.

- Sim, o Sr. está certo. Mas e quanto ao desaparecimento dela?

- Creio já ter descoberto algo que pode ajudar. Por favor, deixe seu telefone comigo que entrarei em contato quando tiver mais informações. Ah, e por favor, deixe o caderno também, ainda usarei-o para mais uma coisa.

O homem agradeceu e saiu, deixando-me a só com o bloco.

O que ninguém percebeu foi que as manchas de sujeira das páginas que entraram em contato com a calçada faziam um pequeno trajeto, de baixo para cima, o que significa que ele foi colhido depois de caído. Uma folha estava arrancada, mas uma parte permanecia no caderno, denotando que quem o fez estava com pressa ou não ligava a mínima para o fato de o caderno ter uma assimetria, o que não batia com o perfil de Anne. Suspeitei e, analisando melhor a folha seguinte a esta, descobri que ela continha os sulcos de um desenho! Consegui, com a ajuda de um lápis de cera, destacá-lo; era o retrato de um homem, barbudo, de feições grosseiras, que em nada se parecia com qualquer um dos amigos que Anne havia desenhado em outras folhas. "Mas então", pensei, "este desenho foi feito na página arrancada. Está tremido, um tanto mal-feito se comparado aos outros que ela fez. Significa, então, que ao fazê-lo ela estava nervosa. Mas por quê?" Peguei o desenho que destacara e fui até a polícia. Mostrei o retrato ao delegado, que prontamente identificou-o como sendo o de Nikolai Sarcovich.

- O famoso estelionatário russo? - espantei-me.

- Sim, ele mesmo. Há alguns meses estamos em seu encalço. Parece que ele está aqui, em Berlim, e já é suspeito de um sequestro.

Estremeci.

- Alguma pista do caso a que se refere? - perguntei.

- Sim. Meus homens encontraram um esconderijo na rua Syrup, nº 221, que acreditam ter pertencido a ele. Provavelmente manteve lá a jovem Lina Hanz, e agora, julgando não estar mais seguro, mudou-se para outro local.

- Muito obrigado, delegado, o Sr. foi de grande ajuda para minhas investigações. Agora já vou indo.

- Perdoe-me ser indiscreto, Sr. Polanski, mas em que caso trabalha no momento?

- No desaparecimento de Anne Hiedler, Sr.

- Ora, de Anne? - riu-se ele, esticando os pés sobre a mesa - Ele já está solucionado. Foi aquele esquisito do Hain. É só uma questão de tempo até que meus interrogadores o façam dizer onde ela está.

- Não tenha tanta certeza assim, Sr. Edartsel - respondi, secamente - Nem sempre o culpado é o mordomo. Estou indo até a rua Syrup agora, e espero que seus homens não me impeçam de entrar na casa.

- Quem sou eu para impedir o grande Alfred Polanski de investigar? Avisarei a eles - disse, com um odioso tom sarcástico.

- Obrigado, e até mais.

Fechei a porta atrás de mim e me dirigi à rua Syrup.

Chegando lá, encontrei a casa tal qual foi deixada: toda revirada, suja e bagunçada. "Malditos investigadores, não são nada sutis", pensei. Após uma inspeção na casa, algumas coisas me chamaram a atenção. Liguei imediatamente para o Sr. Hiedler.

- Aqui é Otto Hiedler. Com quem falo?

- Boa tarde, Sr. Hiedler. Aqui é Alfred Polanski.

- Sr. Polanski! - exclamou meu cliente - Alguma notícia nova, Sr?

- Creio que sim, mas não tenho certeza. Liguei para lhe fazer três perguntas que me ajudarão em minhas deduções.

- Ficarei feliz em respondê-las.

- Primeira: no dia em que sumiu, sua filha levava alguma roupa extra na mochila?

- Sim, pois era dia de educação física. Levou roupas íntimas, uma saia e uma blusa verdes, se não me engano.

- Perfeito! Segunda: sua filha tem algum tipo de alergia?

- Sim, a mofo e poeira. Sempre que entra em contato com eles tem uma crise alérgica e precisa tomar uma dose de Loratadina[5]; caso contrário, morreria sufocada.

- Já que é tão grave, deve carregar o remédio sempre com ela, presumo eu.

- Sim senhor.

- Ok, Sr. Hiedler, terceira e última pergunta. Espero que entenda que é de suma importância para minhas investigações, e que de modo algum se sinta ofendido.

- Sim?

- Qual o tamanho dos seios de sua filha?

- Como disse? - respondeu ele, surpreso.

- O Sr. ouviu, Sr. Hiedler, não me faça repetir; apenas classifique-os: escassos, medianos ou fartos?

- Bem... fartos. Mas não entendo como isso pode lhe ajudar a...

- Obrigado, Sr. Hiedler, foi de muita ajuda - interrompi. Agora preciso desligar. Não há tempo a perder! - e desliguei.

Saí às pressas e fui até Lebenrach-Strauss, a pequena e pacata vila campestre nos arredores da cidade. Fazendo-me passar por um vendedor de apólices de seguros, bati de casa em casa, procurando observar bem os ambientes de cada uma. Já passava das seis da tarde quando bati à porta de um senhor com as feições muito parecidas com as do desenho de Anne - sem dúvida era Nikolai! Disfarcei oferecendo-lhe uma apólice contra acidentes domésticos e casuais enquanto esquadrinhava a residência: era muito bem ajeitadinha e limpa, com quadros e objetos perfeitamente dispostos. Ao contrário do próprio Nikolai, que tinha uma aparência suja e fétida. Em cima da mesa havia uma sacola cujo rótulo logo reconheci: era da Liess, grande rede de farmácias alemã, e cuja filial não ficava há mais de uma quadra dali.

- Não quero comprar nada! - respondeu o canalha com rispidez.

- Mas senhor, esta aqui é ótima! - insisti, representando o papel do chato comerciante que personificava - Nunca se sabe quando terá acidentes assim. Podem acontecer a qualquer momento!

- Não! E não me perturbe mais! - e fechou a porta em minha cara.

Fui até a Liess e fingi procurar por um antialérgico. A atendente prontamente me recomendou o mesmo remédio que Anne tomava em caso de crise - ou pelo menos era similar.

- Este aqui é ótimo, senhor! Recomendado contra todo tipo de crise alérgica. Ação imediata!

- Ah, perfeito! Era esse mesmo que eu procurava. Tão bom assim deve vender bastante, não é mesmo? - intuí.

- Na verdade, senhor, este é apenas o segundo que vendemos esta semana. O Sr. sabe, Strauss é muito limpa e natural. As pessoas não costumam ter problemas respiratórios aqui. O que mais vendemos são analgésicos, antitérmicos e preservativos.

- Entendo perfeitamente. Mas então, a pessoa que comprou o remédio antes de mim deve ser nova na vila.

- Oh, sim, um senhor e sua filha que chegaram aqui na sexta-feira. Eles se instalaram em uma casa que estava para alugar. Vieram aqui no mesmo dia, comprar este remédio e alguns Band-aids. O curioso é que eles não parecem pai e filha... Ele é alto, truculento, de cabelos negros e feições brutas; ela é mais baixa, loira, de feições delicadas e...

- Seios fartos - completei, lembrando-me do que seu pai havia dito.

- Oh! O Sr. a conhece?

- De certa forma, sim.

- Então pode me fazer um favor? Leve a ela estes cinco marcos e diga que é o troco do que compraram. Ela se atrapalhou nas contas e me deu dinheiro a mais, veja o Sr.!

- Ah, sim, claro, pode deixar. Obrigado, e até mais.

Paguei o remédio e saí. Já sabia tudo que precisava saber. Agora só faltava contatar meu amistoso e queridíssimo Sr. Edartsel, da polícia de Berlim. Liguei também para o Sr. Hiedler, e disse-lhe que o caso estava resolvido - Otto soltou um urro de felicidade, e eu lhe disse que estivesse em Lebenrach-Strauss às 7 da manhã - e nem um minuto a menos.

Às 6 da manhã o delegado Edartsel estava comigo em frente à casa de Nikolai.

- E então? Já podemos pegá-lo? - perguntou ele a mim, ansioso.

- Isso depende. Seus homens já estão em posição?

- Sim, estão. As duas únicas saídas da vila estão bloqueadas por viaturas. Meus homens já cercam a casa.

- E meu revólver está pronto também - acrescentei. Então, ataquemos!

Edartsel fez um sinal para os homens em volta da casa e todos irrompemos praticamente ao mesmo tempo. Armas eram apontadas em todas as direções. Todos procuravam por Nikolai, mas só o que encontraram foi Lina Hanz, filha do magnata Bismarck Hanz, a quem o inescrupuloso sequestrara para obter milhões de resgate. Estava amarrada e cheia de hematomas, mas viva - e isso é o que importava.

- Sarcovich não está aqui, senhor! - gritou um dos policiais - Já procuramos em todo lugar!

- Ligue para os postos norte e sul! Um deles deve tê-lo pego.

- Não se importe com isso. É inútil. Nikolai não está mais aqui- disse eu, abatido.

- Como pode ter tanta certeza, Sr. Sherlock?

- Não é preciso ter a mente de Holmes para saber disso - entreguei-lhe um bilhete que encontrara em cima da mesa - Leia.

Dizia:

"Meu caro amigo Polanski,

Impressiono-me com suas habilidades de investigação, mas presumo que já as conhecia. O Sr. é bastante famoso, sabia? Realmente achou que aquele disfarce de vendedor de seguros me enganaria? Francamente!

Mas bem, o Sr. conseguiu o que queria: frustrar meus planos. Desde que apareceu aqui sabia que me vigiaria, e que traria o estúpido Sr. Edartsel e sua tropa de palhaços para me pegar. Era inviável levar essas duas mimadas junto comigo, de modo que tive de fugir sozinho e deixá-las aqui. Poderia tê-las matado, é verdade, mas não faz o meu estilo; sou um homem de negócios. Espero que não se desaponte por seu 6 de julho[6] não ter dado certo, mas é a um brilhante e astuto russo chamado Sarcovich que o Sr. enfrenta - e não um alemãozinho patife chamado Rommel[7].

Espero nos encontrarmos de novo para tratar de negócios mais interessantes que apólices de seguros.

Sinceramente seu,

Nikolai Sarcovich."

- Então ele sabia... - exclamou, desiludido, o delegado.

- Sim, e a essa hora já deve estar bem longe daqui. Raios! Se eu fosse um pouco mais jovem poderia tê-lo pego eu mesmo! Mas tudo bem; o importante é que as reféns estão a salvo.

- Espere! - disse ele - Que duas reféns? Aqui só tem a Srta. Lina!

- Veja, Edartsel - apontei para a cama onde a jovem estava - Essa cama possui um segundo andar abaixo dela. Puxe-o.

- Mas é Anne Hiedler! - a moça estava amarrada e amordaçada - Mas como?! Foi o tal de Hain quem...

Edartsel foi interrompido pelos gritos de Otto e Klara Hiedler, que acabavam de chegar.

- Anne! Minha filha, você está bem! - os três se abraçaram - Tememos o pior!

- Eu estou bem, papai! - respondeu a linda jovem ariana - Tudo graças a esses senhores!

Neste momento, todos olharam para mim. A família Hiedler, irradiante; Edartsel, estupefato.

- Mas como? - perguntaram eles - Como o senhor descobriu isso tudo?!

- Bem - comecei minha narrativa - todas as minhas deduções são muito claras, e tenho certeza de que qualquer um de vocês, em semelhante situação, poderia tê-las feito.

Depois que Edartsel me disse que o esconderijo temporário de Nikolai ficava na rua Syrup, fui até lá para investigar. O lugar era úmido, sujo, bagunçado, muito propício a todo tipo de fungo. Encontrei um antialérgico que não poderia ser de Sarcovich, já que, se ele tivesse esse problema, jamais escolheria um local assim em primeiro lugar. Deveria pertencer, então, a outra pessoa. Além disso, encontrei roupas de mulher - que, a menos que fossem um péssimo disfarce do bandido, poderiam estar relacionadas à pessoa que deixou o remédio lá. Por isso liguei para o senhor, Sr. Hiedler, e lhe perguntei sobre as roupas extras e a alergia.

- Compreendo agora - disse ele - Mas isso não explica o fato de ter me perguntado sobre os seios de minha filha, Sr. Polanski - enfatizou o "Sr. Polanski", num tom um tanto quanto indignado.

- Veja bem, Sr. Hiedler, eu pedi que não me interpretasse mal, e no entanto o Sr. o fez. Se perguntei sobre algo tão indelicado é porque era pertinente à investigação. Junto com as roupas que encontrei havia um sutiã de tamanho avantajado, que de modo algum poderia pertencer à Srta. Hanz, uma vez que ela é jovem demais para ter as mamas tão bem desenvolvidas.

Anne cruzou os braços, enrubescida.

- Entendo, Sr. Polanski, e peço-lhe perdão por duvidar de sua integridade. Por favor prossiga com a narrativa.

- Pois bem - continuei -, aquele local era perigoso demais para alguém que tinha problemas alérgicos, de modo que era preciso um local mais calmo, limpo e tranquilo - e a melhor opção era aqui, em Strauss. Claro que Nikolai também já sabia que a polícia estava em seu encalço, e precisava mudar de esconderijo.

Edartsel entortou a boca

- Mas ainda me faltava saber: estaria realmente Anne com Sarcovich? Rumei para cá e, disfarçado de vendedor de seguros, passei a investigar todas as casas até chegar a dele. Reconheci-o, e erroneamente achei que a recíproca não era verdadeira, o que lhe deu sobressalto e tempo de fugir.

- E o que lhe fez ter certeza de que eu estava aqui? - perguntou a linda moça.

- Ora, porque você mesma não me diz? Conte-nos: qual era o aspecto físico mais marcante do Sr. Nikolai?

- Bem, ele parecia um francês; jamais tomava banho. No máximo trocava de roupa, mas isso não anulava o fedor.

- Perfeito. Vejam, senhores, que este Sr. Sarcovich não era muito dado a limpeza. Como me explicariam, então, a impecabilidade desta casa?

- Ele poderia ter contratado uma diarista - respondeu Edartsel, com um olhar desafiador.

- Ora, meu caro amigo, você e suas obviedades - disse eu, pondo a mão em seu ombro só para irritá-lo. Você conhece tão bem quanto eu os péssimos serviços domésticos que nos prestam essas moças hoje em dia. Diarista alguma teria se dado ao trabalho de organizar esta estante por cor de capa e muito menos de deixar simétricos esses quadros na parede. Só poderia ser obra de nossa bela Anne aqui. Não é verdade, Srta.?

- Sim - respondeu ela -, eu não aguentei ver a casa como estava e tive que arrumá-la.

- Por fim, notei que havia um pacote da Liess em cima da mesa quando olhei para a casa. Fui até a farmácia e obtive preciosas informações de que um senhor moreno e sua filha loira tinham ido até lá para comprar um antialérgico e alguns Band-aids. A propósito, Srta., aqui estão os cinco marcos que a caixa ficou lhe devendo em virtude de seus cálculos errados.

- Sempre odiei matemática - murmurou ela, enquanto pegava o dinheiro.

- Espere! O Sr. disse Band-aids? Oh, meu Deus, minha filha, ele te machucou!? - perguntou a Sra. Hiedler, preocupada.

- Não, não, mamãe, os curativos eram para...

- O rosto do Sr. Sarcovich - completei eu.

- Exato, mas... Como o senhor sabe? Ele os tirou no domingo! - exclamou a menina.

- Elementar, minha cara Anne. No banheiro da casa em Syrup havia um barbeador de péssima qualidade, com a lâmina cega e suja de sangue. Pouco demais para que não pertencesse ao rosto de quem o usou. E, como o Sr. Sarcovich possuía o rosto barbeado quando o vi ontem, presumo que ele o usou, mas acabou se cortando.

- Brilhante! - exclamou a Sra. Hiedler.

- Bem, Anne, acredito que as coisas na quarta-feira tenham acontecido do seguinte modo. Se eu errar ou me escapar algo, por favor, me avise.

- Está bem - respondeu ela.

- Você saiu da escola às 11:30, como de costume. Veio andando para casa pela rua Syrup, e apesar da fome que possuía, resolveu que seria melhor almoçar em casa do que ficar gastando dinheiro na rua.

- Certo.

- Você prosseguiu e passou em frente ao nº 221, onde escutou alguém chorar, e olhando por uma fresta viu o Sr. Sarcovich agredir a pobre Lina para que pudesse tirar uma foto que comovesse seus pais. Você pensou em sair correndo e avisar um policial, mas achou que estes ocupados e insensíveis guardas berlinenses não lhe dariam a menor atenção, e resolveu fazer um retrato dele para ter algo a apresentar às autoridades. Nervosa e com pressa, você foi surpreendida por Nikolai, e com o susto deixou o bloco cair ao chão, enquanto que o lápis voou longe. Ele o recolheu, arrancou enfurecido o pedaço de papel que correspondia ao seu retrato e arrastou-a para dentro da casa, fazendo-a de refém para que não contasse a ninguém sobre o que vira.

A jovem ouvia atentamente a minha história. Ao final, exclamou, surpresa:

- É incrível, Sr. Polanski, foi exatamente como tudo aconteceu. Parece até que o senhor estava lá! Mas não, não foi para mostrar às autoridades que fiz o desenho. Na verdade, não sei porquê o fiz. A reação óbvia de qualquer pessoa seria sair correndo e chamar um policial, mas eu não; fiquei ali, parada, tentando desenhá-lo.

- Eu não trabalho com o óbvio e tampouco com as emoções, Srta. Tudo o que faço é baseado na mais pura racionalidade. Daí eu ter errado esse pequeno detalhe.

- Bem, o importante é que o senhor resolveu o caso, Sr. Polanski, e aqui está sua gratificação. Creio eu que já podemos ir para casa agora - disse o Sr. Hiedler, entregando-me um cheque.

- Sim, certamente. Acho que passarei uma temporada em Novogrudek[8], minha terra natal. O ar de lá me faz bem.

- Muito obrigada, Sr. Polanski! - disse Anne, abraçando-me e contraindo seu volumoso busto contra meu peito - Devo minha vida ao senhor!

- Não há de ser nada, minha querida. Aliás, posso dar-lhe um conselho?

- Que pergunta! É claro que sim!

- Tome aulas de matemática com Hain Bielski, de sua classe na escola. Estou certo de que ele tem muito a ensiná-la.

Ela agradeceu e a família se foi. Edartsel se aproximou de mim.

- Bielski? - ele arregalou os olhos, estupefato - Mas não é aquela família que...[9]

- Investigue melhor antes de acusar um conterrâneo meu, Sr. Edartsel. Aliás, solte-o imediatamente, antes que seus gentis interrogadores o machuquem. E acho que o Sr. lhe deve desculpas pessoalmente.



[1] O ataque a Pearl Harbor foi previsto horas antes de acontecer graças aos esforços da inteligência estadounidense. No entanto, problemas de comunicação impediram que a mensagem chegasse a tempo ao porto, deixando de, assim, evitar o ataque.

[2] Joseph Goebbels, ministro da propaganda alemã durante a 2ª Guerra, foi responsável por grande parte da lavagem cerebral feita na população.

[3] Heinrich Himmler, chefe da Gestapo e da SS (respectivamente polícia secreta e tropa de choque alemã) durante a 2ª Guerra, perseguiu, prendeu e assassinou diversos dissidentes políticos durante sua gestão.

[4] O nome da mãe de Adolf Hitler era Klara Hitler.

[5] Substância ativa de diversos medicamentos antialérgicos.

[6] 6 de julho, mais conhecido como "Dia D", foi o dia escolhido para o ataque pelas tropas aliadas às tropas alemãs, que ocupavam a França durante a 2ª Guerra Mundial. O elemento surpresa foi essencial para o sucesso da missão.

[7] Erwin Rommel, o "Raposa do Deserto", foi um general alemão cuja atuação no Afrikakorps (campanhas alemãs pela África) lhe rendeu muitos louros. Era responsável pela defesa da área litorânea francesa atacada pelos aliados no Dia D. Coincidentemente (ou não), neste dia estava em Berlim, comemorando o aniversário de sua mulher.

[8] Importante cidade da Polônia, onde nasceram os irmãos Bielski (ver a seguir).

[9] O livro "Os Irmãos Bielski", de Peter Duffy, conta a história real de 3 judeus poloneses que, reunindo pessoas e libertando prisioneiros de campos de concentração, constituíram um refúgio na floresta, onde sobreviveram aos ataques nazistas até o fim da guerra.

O porquê de um blog e o desamparo social

Bom, este é o início deste blog, que não sei exatamente porquê resolvi começar. Ter um espaço para comentar situações do dia-a-dia, indicar bandas e postar contos é realmente legal, mas não pode ser só isso. Deve haver algum motivo a mais. Mas quem sou eu para me julgar? "É bem mais difícil julgar a si mesmo que julgar os outros", já dizia o rei de um dos planetinhas que o Pequeno Príncipe visitou.

Bom, a ambiguidade do título do blog dá-se pela minha incrível falta de criatividade para criá-los (os títulos). "Deep Blue" é o nome de uma música da banda brasileira Angra (e que sobre a qual farei um post mais tarde), mas também é, segundo uma rápida pesquisa minha, o nome de um "supercomputador criado pela IBM especialmente para jogar xadrez, com 256 co-processadores , capazes de analisar aproximadamente 200 milhões de posições por segundo". Curioso...

Um dos pontapés para a criação desse blog foi uma situação que aconteceu comigo hoje. Voltava para casa quando sobe no ônibus um senhor já de idade, muito magro e cambaleante. Apresentou-se com um nome que não me recordo, mas que é algo próximo de "Alcílio". Disse que foi professor da UFPa, que estava acometido de uma leucemia e precisava tratar-se. Disse ainda que tinha sido assaltado e perdeu tudo, e andava de transporte em transporte pedindo algum dinheiro para ajudar-lhe em tal sentido. Desci, pois era realmente minha parada, mas junto comigo desceram várias pessoas que estou certo de que não iam fazê-lo. A simples presença daquele senhor as incomodava, e achei aquilo muito triste. Vim andando pela rua das Mercedes (aquela ali perto de São Braz que fica entre a 25 de março e a José Bonifácio, bem próximo do Formosa) e lá vi também diversos moradores de rua, deitados, uns dormindo, outros fitando o horizonte. Perdidos, distraídos. E isso me fez pensar em quanto reclamamos de nossa boa vida. Pelo menos quanto a mim, tirando minha vida sentimental, ela é perfeita. E mesmo assim não sou plenamente feliz.

Pra um post de estreia (sem acento) é só. Fico por aqui.

P.S: Falando em língua portuguesa, quantas ênclises, não? É que elas são mais legais.